quinta-feira, 13 de setembro de 2012

COSMOPOLIS, de David Cronenberg



COSMOPOLIS
de David Cronenberg
dia 13 de Setembro, às 21:30h, na Casa das Artes

Sinopse

Eric Packer (Robert Pattinson) é um jovem e atraente multimilionário nova-iorquino. O filme segue o seu percurso durante 24 horas consecutivas, onde percorre a cidade que nunca dorme em busca de algo que o salve do tédio absoluto em que vive. Ao mesmo tempo, a bolsa atravessa um momento de crise sem precedentes. E Eric nunca poderia imaginar que, em menos de um dia, perderia toda a sua fortuna.

Realizado por David Cronenberg, a partir de um romance de Don DeLillo, conta com produção de Paulo Branco e interpretação do actor Robert Pattinson à frente de um elenco que inclui Paul Giamatti, Juliette Binoche, Mathieu Amalric e Samantha Morton. O filme está em estreia absoluta no Festival de Cannes, onde compete pela Palma de Ouro.



Ficha técnica:

Título original: Cosmopolis (EUA, 2012, 108 min.)
Realização e Argumento: David Cronenberg
Interpretação: Robert Pattinson, Jay Baruchel, Juliette Binoche, Samantha Morton, Paul Giamatti, Mathieu Amalric
Fotografia: Peter Suschitzky
Montagem: Ronald Sanders
Música: Howard Shore
Produção: Paulo Branco, Martin Katz
Estreia: 30 de Maio de 2012
Distribuição: Clap Filmes
Classificação: M/16
Críticas

Cosmopolis de Cronenberg, o filme da crise
Francisco Ferreira, Expresso, 25 de Maio de 2012

David Cronenberg mede o pulso ao mundo com uma fábula impiedosa sobre o capitalismo.

Cannes 2012 é um festival de filmes de crise em tempos de crise. Disso fala também "Cosmopolis", de David Cronenberg, adaptação ao cinema do premonitório livro que Don DeLillo escreveu em 2003, antecipando os problemas económicos com que o mundo se depara nestes dias. O filme estreia esta noite, em Cannes.

A personagem principal de "Cosmopolis", Eric Packer (Robert Pattinson), caprichoso golden boy de Wall Street, decide atravessar de limusina uma Nova Iorque paralisada por engarrafamentos e estranhas manifestações revoltosas. O presidente americano está de visita à cidade, acabou de morrer um famoso ídolo pop (um rapper sufi cujo enterro se vê na TV), as ruas estão a ferver: a atmosfera é apocalíptica. Packer tem 28 anos. A sua vida é uma cápsula virtual.

Queda no abismo

Nas 24 horas em que a acção decorre, Packer perderá contudo toda a fortuna. Apostou contra uma moeda asiática que não pára de subir na bolsa. Dentro da limusina, Packer vive num mundo controlado e insonorizado. É na limusina que ele recebe a amante do costume (Juliette Binoche), a visita do médico para o check up diário, uma fiel colaboradora na bolsa e ainda outro analista dos impérios da finança que o prepara para o descalabro.

É da janela da limusina que ele encontra por acaso a mulher com quem tem casamento marcado (Sarah Gadon), também presa nos engarrafamentos, dentro de um táxi. E será também de limusina que Packer chega ao local onde se confrontará com Benno Levin (genial papel de Paul Giamatti), um ex-empregado de Packer que entretanto chegou ao fundo do poço e já não tem nada a perder. Se Packer é um capitalismo sobre rodas seriamente ameaçado por doença mortal, Benno é, em simultâneo, o seu oposto e o seu misterioso duplo. Chega a hora de saldar as dívidas.

Filme para dividir

Com "Cosmopolis", Cronenberg teve que enfrentar várias dificuldades. Conseguiria ele adaptar ao cinema a prosa cerebral de DeLillo, num dos seus livros mais herméticos? Resolveria com eficácia problemas de mise en scene num espaço tão concentracionário como uma limusina, onde grande parte do filme decorre? Levaria a bom porto a aposta em Robert Pattinson (que está em praticamente todas as cenas do filme), um ídolo de adolescentes da saga "Twilight" e de um cinema comercial que nada tem que ver com o do realizador canadiano?

Começamos a responder às respostas por Pattinson, que sai incólume. Para o ator britânico, este é o filme de uma viragem de percurso, "numa fase da minha vida em que vou ter que fazer opções e testar-me enquanto ator" - foi Pattinson quem o disse na entrevista com o ator britânico que o Expresso publica amanhã.

Em relação ao resultado do filme, "Cosmopolis" está destinado a dividir. Cronenberg foi fidelíssimo à matéria literária, há diálogos de DeLillo vertidos palavra por palavra e, num espaço tão cerrado, dificilmente se conseguiria filmar o texto (que é abundante) sem recorrer ao uso de campos-contracampos. Na conferência de imprensa desta manhã, o realizador canadiano pareceu antecipar-se às vozes que logo sugeriram que este filme, "necessariamente um mutante híbrido do livro" (Cronenberg), tende para uma versão teatral.

Cronenberg recusa essa aproximação: "para mim, um rosto que fala é ainda a essência do cinema. E o cinema está nas opções de luz, na escala dos enquadramentos, na intenção dos movimentos da câmara, por isso não há nenhum teatro aqui."

Já Pattinson, que deixou a sala a rir ao afirmar que "a interpretação não é suposta ser uma coisa inteligente", sublinhou a entrega total ao método de trabalho do cineasta. Pattinson não tem um papel fácil. A sua personagem passa pelas sevícias de um médico que, de dedo em riste, lhe toca na próstata assimétrica (Cronenberg não abandona a 'assimetria' do seu ponto de vista sobre a sexualidade). Passa pela humilhação de um manifestante irado (aparição de Matthieu Amalric) que lhe atira uma tarte à cara. Tudo se abate sobre a personagem (até uma cena de automutilação), que é carrasco e vítima do mundo que criou. Cronenberg insistiu depois num ponto: "Eric Packer não simboliza o capitalismo. Não simboliza nada além do ser humano que é".

Palavra versus acção

"Cosmopolis" é um dos filmes a concurso mais desafiantes de Cannes e a sua proposta é nova em Cronenberg: neste thriller, é a palavra, e não o movimento, que assume a responsabilidade da reflexão. Neste ponto, "Cosmopolis" é quase o inverso de "Crash". Porém, é sobretudo dessa fase de Cronenberg que nos lembramos. Ambos os filmes partilham a mesma visão patológica, mórbida e cruel do mundo contemporâneo. As mesmas pulsões autodestrutivas e o mesmo sacrifício do corpo humano perante o tempo que o rodeia. Ambos partilham, ainda, uma 'ironia da catástrofe' - e a ironia é talvez a única coisa que ainda resta.

Por falar nisso, é irónica a coincidência de "Cosmopolis" com "Holy Motors", a obra-prima de Leos Carax (é a nossa Palma de Ouro) que Cannes exibiu há dois dias. No início do filme de Cronenberg, Eric Packer pergunta-se: "onde será que estacionam todas estas limusinas de Nova Iorque?" O que é curioso é que, em "Holy Motors", onde as limusinas têm também um papel preponderante, Carax responde a Cronenberg. Aqueles bólides infernais que Cannes tanto aprecia estacionam numa garagem que só se pode chamar cinema.

Um filme falado
Vasco Câmara, Público de 31 de Maio de 2012

O cinema de Cronenberg já furou a carne do futuro. Mas terá sido apanhado pelo presente, não escapando à redundância e a comentar o que já sabemos e o que já sabemos dele? Não parece, mas esta, aqui em cima, é a imagem de um filme falado.

O trailer de Cosmopolis também é um jogo de simulacros. Joga com o reconhecimento do espectador perante a fase do canadiano David Cronenberg que entretanto se tornou iconografia pop - e aproveita o eventual desejo do espectador que ele regresse a ela. Introduz uma jovem vedeta e uma vedeta dos jovens, Robert Pattinson, nesse universo codificado: aproveita o potencial de novos públicos, como se David se pusesse agora a (re)distribuir jogo, mas ao mesmo tempo quer colocar ao largo o amanhecer dos vampiros e investir Pattinson de uma euforia virginal: a dos inflamados anti-heróis cronenberguianos - o “show me something that I don''t know” com que termina o trailer, por exemplo.

Jogo de simulacros, sim: afinal, mesmo se Pattinson pode evocar, assim de repente, Jude Law, cuja frigidez Cronenberg aproveitou perversamente em eXistenZ, Cosmopolis não é eXistenZ (1999), esse brinquedo que o canadiano fez com o seu universo, um gadget lúdico e viscoso que aconteceu depois da experiência-limite (no limite do cabotinismo com os actores, por exemplo) que foi o sublime Crash (1996).

Cosmopolis: nada a ver com o Cronenberg desses tempos, portanto, que era visceral, paródico, olímpico, uma aventura ofegante; tudo a ver com o Cronenberg de uma essência (re)descoberta, como ele disse: a de que o cinema é a palavra e um rosto e não o Grand Canyon.

Aplicando essa new flesh do actual estado das coisas cronenberguiano a Cosmopolis, os diálogos da obra de Don DeLillo seriam transpostos imaculadamente para o ecrã mas - tanto cuidado que Cronenberg tem mostrado em sublinhar isso, que parece uma defesa por antecipação... - não implicaria um teatro filmado visto que está ali a câmara que se movimenta, está ali a luz, e com esse aparato nasce um ser “mutante”, o filme. Cronenberg é luminoso e didáctico nas entrevistas e nas conferências de imprensa. Mas a questão é sensível, pelos vistos. Devem-lhe estar sempre a falar na “teatralidade” dos seus últimos filmes. Que não pode ser, sequer, a acusação de uma falha. Podíamos desenrolar uma lista de filmes e cineastas supostamente “teatrais” que são essencialmente cinematográficos. O problema não está na “essência”. Está na dificuldade que os filmes de Cronenberg têm revelado em chegar a esse tal corpo “mutante” e em escapar à redundância do que nos desata a falar sobre o que anteriormente nos mostrou.

De Don DeLillo diz-se que foi premonitório há dez anos, com Cosmopolis (2003): o fim do mundo (capitalista) tal como o conhecíamos. Na sua limousine-sarcófago, a caminho do barbeiro, Eric Michael Packer/Robert Pattinson, boy wonder da Alta Finança, espera o apocalipse inevitável que ameaça das ruas: o dinheiro perdeu o fio de narrativa, só se sabe narrar a si próprio; alguma coisa terá de acontecer, porque o futuro se tornou insistente e o mundo demasiado contemporâneo. O cinema de Cronenberg há algum tempo também furou a carne do futuro. Mas como se não tivesse forças para escapar à redundância, agora só se narra a si próprio, não escapando a comentar o que já sabemos e o que já sabemos dele.

Por mais excitante que seja uma entrevista ou uma palestra de Cronenberg, é difícil encontrar - e pensamos no efeito de câmara de eco de Cosmopolis - na retórica filosofante que se senta nesta limousine, nas entradas e saídas de actores para fazerem o seu “número” perante Pattinson ou nos ruminantes vinte minutos finais, em que Paul Giamatti, “character actor” de serviço, nos dá outra vez o derrotado, sejam a essência desse “essential cinema”. Serve para justicar uma zona de conforto de alguém cujo cinema já esteve numa zona de perigo. (Pattinson também não dá para mais, nem chega a ser Jude Law, esse actor frígido a quem Cronenberg trocou as voltas para acentuar a viscosidade.)

O cinema de Cronenberg precisa que algo lhe aconteça. Cosmopolis é o filme sobre a actual CRISE e o filme da sua actual crise.

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